Desde 1968 sem disputarem a mesma competição por conta da rivalidade, Ideal e Recreio reeditam final de torneio; conheça a história e saiba quem venceu
Gre-Nal, Fla-Flu, Cruzeiro e Atlético-MG, Corinthians e Palmeiras. De norte a sul, o Brasil tem rivalidades históricas, charmosas, intensas, cada uma com sua peculiaridade. Mas existem clássicos no futebol brasileiro que a maioria do público nem imagina que existam.
Pense só em dois clubes do interior, da mesma cidade, que tem 10 mil habitantes e onde existem dois estádios. Agora imagine uma rivalidade forte, pesada, que sobrevive ao tempo e é a causa destes dois times optarem por não se enfrentarem ou sequer disputarem a mesma competição durante 51 anos. Imaginou?
Agora reúna a vontade de acabar com essas cinco décadas sem clássicos, some duas boas campanhas no mesmo campeonato e adicione uma final, que multiplica emoções e divide o município, em que boa parte dos moradores sequer sonhava em nascer no último confronto entre os dois.
Ideal e Recreio são os resultados desta equação. Desde 1968 sem jogarem entre si, as equipes disputaram neste domingo o segundo jogo da final da 7ª Copa dos Campeões da Liga Esportiva de Cataguases. Tão importante quanto levar a taça para casa (siga a reportagem até o fim para conhecer o campeão de 2019) é a paixão de uma cidade pelo futebol, que atravessou gerações e permanece até hoje em Recreio, na Zona da Mata mineira.
Cidade de Recreio tem 10 mil habitantes, dois estádios, dois clubes e uma grande rivalidade — Foto: Reprodução/TV Integração
O último dérbi: o estopim para uma cidade dividida
O ano era 1968. Recreio já respirava futebol, tendo como protagonistas Ideal e Recreio. No entanto, o equilíbrio entre as equipes e o regulamento do Torneio da Amizade conspiraram, por um capricho, para que o título fosse disputado em Leopoldina, cidade vizinha. Depois de vitória do Ideal por 2 a 1, jogando em casa a primeira partida, e do triunfo do Recreio, por 1 a 0, também como mandante, a decisão ficou para o terceiro jogo.
O Estádio Guanayro Fraga Mora foi o palco para o duelo entre as equipes. Na prorrogação, o Ideal venceu por 2 a 1 e ergueu a taça. O título foi bastante comemorado pelo time azul e branco. Do lado alvinegro muita reclamação. Gente da cidade segue dizendo que aquele jogo “foi comprado”.
O pessoal do Ideal ignora as provocações. Segundo Antônio Spedo, jogador que defendia a Cobra na época, se houve alguém prejudicado em 1968 foi o próprio Ideal. Ele se justifica, mas entende que o assunto seja polêmico.
- Muito pelo contrário. Veja você que com dez minutos de jogo expulsaram um jogador do Ideal e anularam um gol nosso, perfeito. Quer dizer... quem comprou o árbitro foi o Recreio Esporte Clube. Eles não gostam que fale isso, tem 50 anos que a gente discute e ninguém chegou a uma conclusão ainda... eles estão engasgados até hoje. Vamos ver se eles vão continuar engasgados ou vão botar para fora né? – disse.
Délio Pimenta torce pelo Recreio e e filho do lendário Chininha, que fez uma artimanha a favor do Ideal em 1968 — Foto: Reprodução/TV Integração
Não bastasse a polêmica com a arbitragem, outra situação ilustra a mística da decisão de 68. E quem conta é Délio Pimenta. Torcedor e ex-jogador do Recreio, ele só conseguiu ser campeão com a camisa do Ideal. E para aumentar a relação dele com as duas equipes da cidade, Délio é filho de Chininha, técnico do Ideal naquela decisão. Ele conta a artimanha que o pai fez na terceira partida em Leopoldina, quando convidou irmãos gêmeos para atuar.
- Ele inscreveu dois jogadores que não jogaram nenhuma partida. Ai na final em Leopoldina, no intervalo, um deles falou: “Chininha, tira meu irmão e coloca eu”. Foi isso que aconteceu e o substituto foi o que fez gol da vitória e do título do Ideal sobre o Recreio lá – revelou Délio. dizendo que o pai poupou uma substituição, já que poucos perceberam que um irmão havia entrado no lugar do outro, pela semelhança física.
Paixão além do tempo
Foi roubado ou não foi roubado? Essa é a principal discussão sobre o título do Ideal em cima do Recreio em 1968. E um personagem, que torce pelo Ideal, ajuda a endossar o coro dos torcedores do Leão. Aramides Vieira não foi o juiz da final, mas era árbitro e apitava torneios na região. Ele admite que na hora em que a coisa apertava para a Cobra, dava aquela forcinha para o time do coração.
- Ah, eu ajudava o Ideal, não faltava. Na maioria dos jogos eu que era o arbitro. Já apitei campeonato de Além Paraíba, Cataguases, São João Nepomuceno. Mas jogo contra o Ideal eu segurava devagarzinho. VAR para mim não valeria nada, Ideal não podia perder – contou.
Aramides Vieira dava aquela forcinha para o Ideal no apito — Foto: Reprodução/TV Integração
Quem acompanhou como torcedor de arquibancada aquela época foi Adilon Pereira. Apaixonado pelo Recreio, ele assistiu às duas primeiras partidas de 68 e não pôde ver a derrota da equipe em Leopoldina. Ele diz que muita coisa mudou no futebol e não acredita que a arbitragem volte a ser a protagonista da decisão.
- Não vai, as cabeças são outras, né? Mas teve muita coisa intrigante, que ficou na memoria, na história de cada um. O sentimento pelo Recreio só aflora, só aumenta. Eu sou apaixonado. Eu não sei nem porque eu sou Recreio, aquilo nasceu dentro de mim e só não cresceu mais porque eu cresci pouco – brincou, pela baixa estatura.
Joaquim Donato fez o primeiro gol da história do Ideal no Alcides Campos — Foto: Reprodução/TV Integração
Quem também participou deste processo foi Joaquim Donato, só que dentro de campo. Ex-jogador e Ideal de coração, ele foi quem marcou o primeiro gol da história do time azul e branco, em 1962, no estádio Alcides Campos. Ele diz que se sente parte importante para que o clube seguisse sua trajetória.
- Joguei no Ideal ate 28 anos, 29, por ai. Ai começou a entrar o profissionalismo. Eu trabalhava, não podia continuar e pedi para os moleques continuarem. Ai virou isso ai, essa loucura – falou.
Primeiro agachado, da esquerda para a direita, Jadir tem história pelo Recreio — Foto: Jadir Venâncio/Arqquivo pessoal
Na mesma linha, Jadir Venâncio teve sua importância para o Recreio. Inclusive, poderia ter sido o herói do título, já que fez o gol do Leão na vitória sobre o Ideal, na segunda partida da melhor de três em 68. Porém, mesmo com o caneco tendo escapado, ele revela que há coisas mais importantes do que uma taça.
- Sou conhecido por isso (gol contra o Ideal) até hoje. Tem um rapaz de 51 anos ai com meu nome. Na época a mãe estava gravida, veio para o campo e falou que se o filho dela fosse homem, ela iria colocar o nome de quem fizesse o gol do Recreio. E ele está ai até hoje. Tem coisa melhor que isso não, isso é gratidão, coração – disse, emocionado.
Rivalidade sobrevive
Luís Carlos Ferreira é mais do que um torcedor do Ideal, Ele é simplesmente da família que criou o clube. Ele não teve problemas ao acompanhar o time durante as últimas décadas, sempre arrumava tempo para se informar e ir aos jogos do clube no Alcides Campos. No entanto, o hiato de tempo entre a última decisão contra o Recreio mexe com ele.
Tanto que Luís admite o nervosismo e dá um exemplo de como esse título e a manutenção da rivalidade são essenciais para a sobrevivência de Ideal e Recreio. Na primeira partida da final da Copa dos Campeões de Cataguases, no Euvaldo Lodi, em que o Recreio venceu por 1 a 0 o Ideal, ele não foi.
Torcida do Ideal ansiosa para a decisão — Foto: Reprodução/TV Integração
- É uma emoção muito grande, tanto que eu vou confessar... não fui ao primeiro jogo no campo do Recreio. Eu não tive coragem para ir lá enfrentar isso. Para mim, vale mais que final de Copa do Mundo – disse.
E a dona Vilma Helena, então? Essa é Recreio doente. Tanto que, pela influência familiar, ela se tornou rainha do Recreio durante a adolescência. Vilma lembra com carinho da época, mas também lembra do tempo que ficou sem assistir a um clássico e comemora a volta do Recreio às mesmas competições do rival, que também é representado na família.
Vilma Helena é Recreio doente — Foto: Reprodução/TV Integração
- É muito importante, dá muito orgulho. Eu nem passo pelo campo do Ideal, não entro lá. Mas eu tenho uma família lá da Massa Azul, um sobrinho e tenho dois filhos em casa que são Recreio. Sou amiga de todo mundo da cidade, mas a minha praia é aqui (estádio do Recreio) – disse.
A volta do clássico
Depois de cinco décadas, em que o Recreio, por opção, decidiu não disputar as mesmas competições que o rival Ideal, o time alvinegro acabou com essa história. Sob nova direção, o Leão, se organizou e se inscreveu na Copa dos Campeões de Cataguases, em que chegou à decisão com o Ideal.
Estádio Euvaldo Lodi recebeu o primeiro duelo da final, vencido pelo Recreio por 1 a 0 — Foto: Reprodução/TV Integração
Muito disso, pelas mãos do vice-presidente Ricardo Justo. Mais do que um dirigente, Ricardo é neto do Elmo Justo, presidente do Recreio em 1968. Descartando revanchismo e exaltando a cidade de Recreio, o dirigente afirma que ouviu muita coisa nos anos sem clássicos, mas que agora as coisas serão resolvidas mesmo dentro das quatro linhas.
- Nós sabemos que no futebol existem as provocações, isso é normal. Não tem problema nenhum desde que sejam sadias. E nós viemos desde o inicio do campeonato muito humildes e confiantes. Claro, que falar, todo mundo fala, mas quem vai resolver está lá dentro de campo – falou.
Empolgado também está Vitor do Bem. Neto de Antônio Lemos, pedreiro que ajudou a construir o estádio Euvaldo Lodi, ele afirma que a cidade vive um clima diferente desde que a possibilidade do reencontro entre Ideal e Recreio surgiu.
- Percebe-se que desde o começo do campeonato o clima é outro, né? “Será que vai dar Recreio? Ideal? As duas equipes entraram no torneio e só se fala disso – contou ele, que também faz parte da diretoria do Recreio.
Estádio Alcides Campos definido como palco da volta — Foto: Reprodução/TV Integração
Do lado do Ideal, Léo Medeiros mantém a seriedade e o foco do bicampeonato da Copa dos Campeões, que o Ideal ganhou em 2018. Ex-volante do Flamengo e neto de Alcides Campos, que cedeu o terreno para a construção do estádio do Ideal, que leva o nome do avô, ele valoriza a volta do rival às disputas, mas se diz confiante no título.
- Na verdade, o Ideal sempre entrou nas competições, é um time muito ativo, sempre participa, tem imensa torcida. O Recreio que não participava. Agora como mudou a diretoria, o time entrou no torneio. A gente simplesmente está defendendo o título, porque somos os atuais campeões e coincidiu de ter esse jogo – declarou.
Hora da decisão
Com boas campanhas, Ideal e Recreio chegaram à decisão da 7ª Copa dos Campeões em 2019. A vitória na partida de ida por 1 a 0, com gol do atacante Marlon, deu ao Recreio a vantagem de até empatar no estádio Alcides Campos para erguer a taça. Ao Ideal, restava vencer por qualquer placar para levar a definição para as penalidades.
A cidade de Recreio amanheceu com a festa das torcidas — Foto: Reprodução/TV Integração
Como não poderia ser diferente, desde as primeiras horas da manhã, o clima na pacata Recreio era efervecente, de decisão. Camisas azuis, pretas e brancas, fossem do clube ou de outros times, para remeter à paixão por Ideal e Recreio, eram facilmente encontrados.
Torcidas proporcionaram belas imagens dentro do estádio Alcides Campos — Foto: Reprodução/TV Integração
Na chegada ao Estádio Alcides Campos, muita festa das duas torcidas. E muita segurança. Com grande efetivo de policias e bombeiros, os torcedores chegavam para o “Clássico do Século”. Nas arquibancadas, cerca de 1800 pessoas, com balões, cânticos, instrumentos musicais, bandeiras... coisas que estão em falta em muitos estádios de futebol.
Galera do Ideal estava confiante — Foto: Reprodução/TV Integração
Em campo, um jogo eletrizante, cumprindo as expectativas. E as emoções começaram cedo. Logo aos cinco minutos, o Ideal conseguiu o gol que precisava. Edu fez 1 a 0 para a Cobra, que dava o bote para levar a decisão para os pênaltis. Mesmo se o time de Merica Ferreira ampliasse o marcador, o título seria definido da marca da cal.
Guilherme Alves se tornou o nome do jogo e será lembrado por 51 anos em Recreio — Foto: Reprodução/TV Integração
O Leão, comandado por Pereira Sampaio, buscava o gol que lhe daria o caneco na casa do adversário. No primeiro tempo, o time não conseguiu e, depois do relógio avançar bastante na segunda etapa, o placar se mantinha 1 a 0 para o Ideal. Só que aos 38 minutos, veio o gol do título. Após cruzamento da esquerda, Guilherme Alves apareceu para empatar e dar o título para o Alvinegro, no reencontro dos times de Recreio após 51 anos.
Toricda de Recreio comemorou título inédito em cima do rival — Foto: Reprodução/TV Integração